Carlos Adriano : he’s reel !
Décio Pignatari*
“É preciso
saber mijar como as cigarras para poder cantar como elas”, disse Apollinaire.
É a tendência (a)normal de viciados e apaixonados por um medium:
em todas as partes deste planeta – e até fora dele, quem sabe – há sempre um medium
addict, da borduna à net, da arte plumária à instalação bienalesca, do
ruído percussivo aos quadrinhos, das inscrições rúnicas a James Joyce, da
paleo-iconicidade à tv, ao micro, ao cd-rom. Curioso é que, em plena bolha
aurática da revelação de um medium, proliferem posturas, posições e
caminhos, segundo o repertório dos “tomados” – que podem ser reduzidos a três
grandes raízes, ou radicalidades, como sugeriu Marx: falando em cinema (sem
valores hierarquizados):
1. Um medium é um meio de ler, descrever, revelar o mundo. Os
viciados desta espécie realizaram grandes obras: Griffith, Stroheim, Chaplin,
Renoir, Cukor, Kazan, Truffaut, Altman, Ford, Bergman. É a mais larga faixa dos
grandes criadores, a larga porta.
2. Os drogados radicais desta rubrica são criadores
metalingüísticos. Aqui, o medium não é simplesmente usado para registro
de supostos eventos externos ou estranhos a ele, mas como auto-revelação, como medium
revelador do próprio medium, os eventos externos servindo apenas
como pretextos e não como textos.
Nesta operação, os criadores estabelecem um isomorfismo entre o medium
e os próprios processos das operações mentais, da estrutura dinâmica dos
sentimentos pensamentais e dos pensamentos emocionalizados ou emulcionalizados.
Estabelece-se o isomorfismo entre a cabeça deles e o filme-mundo que
estão lendo (em verdade, organizando semanticamente): Eisenstein, Dreyer,
Peixoto, Welles, Richter, Kubrick, Resnais, Godard, Bogdanovich.
3. Da terceira raiz crescem os grandes criadores metonímicos, dos
surpreendentes lances aos pedaços, equilibristas de fio de navalha, entre as
duas posições anteriores: Murnau, Wiene, Lang, Clair, Hitchcock, Minnelli,
Wise, De Sica, Fellini, Kurosawa, Kinoshita, Imamura, Carné, Wilder.
Carlos Adriano, que realiza obras em extratos (apenas quatro numa
década), inscreve-se na Banda 2, a partir de sua Opus 2, A luz das palavras, onde
pratica um exercício de estilo – música e montagem – com neon-palavras luzentes
e cantantes.
Mas, em Remanescências, é o salto, é o diabo erótico agarrado pela
cauda. A obsessão pelos onze fotogramas de Cunha Salles, 1897, gênese mítica do
cinema brasileiro, não é simples exercício de aeróbica curto-documental, tipo
tema-com-variações, mas uma mesmerizante “reelization” do pensamento fílmico, numa abstração de
tresloucada reiteração, tal como as ondas se esbatendo na tela final dos
limites mariopeixotanos.
Não são apenas ondas untando o velho madeirame de um trapiche, mas a
própria estrutura-processo do pensamento icônico em sua sóbria demasia
mnemônica. É Carlos Adriano aprendendo a urinar como as cigarras.
Pronto para cantar com Vassourinha, A voz e o vazio. A
escolha em si do incrível pretinho tuberculoso já absorve o sabor do raro e do
bizarro. Não houve, nem haverá, quem possa cantar Seu Libório com tão
cândida malícia e justeza, ou sonhar com aquela casinha lá na Marambaia (eu
estava num bonde aberto, vindo do ginásio Mackenzie, quando vi o ajuntamento à
entrada do Araçá: - “Que enterro é esse?” – “É o Vassourinha”).
O filme narra a obra-vida do cantor como escólios de bandagens
inscritas numa múmia, em montagens de gazes reticuladamente translúcidas
(méritos para o fotobandagista Carlos Reichenbach, enfermeiro do table-top
e cirurgião-mor da luz cine-informada). Estamos diante de scrolls do Mar Morto das doze canções que Vassourinha deixou.
A escritura icônico-hieroglífica de Carlos Adriano é a decifração da decifração de uma rica
tumbinha tutancamônica da MPB. Carlos Adriano: he’s reel !
–
Enviado por fax a Bernardo Vorobow em 7
dezembro 1998, 14h24
publicado na Folha de S. Paulo, Acontece (Ilustrada), pág. 1, 18
abril 1999
[*publicado na internet em 13 de outubro de 2015]
[*publicado na internet em 13 de outubro de 2015]