terça-feira, 13 de outubro de 2015

Carlos Adriano : he’s reel !

Carlos Adriano : he’s reel !

Décio Pignatari*
“É preciso saber mijar como as cigarras para poder cantar como elas”, disse Apollinaire.

É a tendência (a)normal de viciados e apaixonados por um medium: em todas as partes deste planeta – e até fora dele, quem sabe – há sempre um medium addict, da borduna à net, da arte plumária à instalação bienalesca, do ruído percussivo aos quadrinhos, das inscrições rúnicas a James Joyce, da paleo-iconicidade à tv, ao micro, ao cd-rom. Curioso é que, em plena bolha aurática da revelação de um medium, proliferem posturas, posições e caminhos, segundo o repertório dos “tomados” – que podem ser reduzidos a três grandes raízes, ou radicalidades, como sugeriu Marx: falando em cinema (sem valores hierarquizados):

1. Um medium é um meio de ler, descrever, revelar o mundo. Os viciados desta espécie realizaram grandes obras: Griffith, Stroheim, Chaplin, Renoir, Cukor, Kazan, Truffaut, Altman, Ford, Bergman. É a mais larga faixa dos grandes criadores, a larga porta.

2. Os drogados radicais desta rubrica são criadores metalingüísticos. Aqui, o medium não é simplesmente usado para registro de supostos eventos externos ou estranhos a ele, mas como auto-revelação, como medium revelador do próprio medium, os eventos externos servindo apenas como pretextos e não como textos.

Nesta operação, os criadores estabelecem um isomorfismo entre o medium e os próprios processos das operações mentais, da estrutura dinâmica dos sentimentos pensamentais e dos pensamentos emocionalizados ou emulcionalizados.

Estabelece-se o isomorfismo entre a cabeça deles e o filme-mundo que estão lendo (em verdade, organizando semanticamente): Eisenstein, Dreyer, Peixoto, Welles, Richter, Kubrick, Resnais, Godard, Bogdanovich.

3. Da terceira raiz crescem os grandes criadores metonímicos, dos surpreendentes lances aos pedaços, equilibristas de fio de navalha, entre as duas posições anteriores: Murnau, Wiene, Lang, Clair, Hitchcock, Minnelli, Wise, De Sica, Fellini, Kurosawa, Kinoshita, Imamura, Carné, Wilder.

Carlos Adriano, que realiza obras em extratos (apenas quatro numa década), inscreve-se na Banda 2, a partir de sua Opus 2, A luz das palavras, onde pratica um exercício de estilo – música e montagem – com neon-palavras luzentes e cantantes.

Mas, em Remanescências, é o salto, é o diabo erótico agarrado pela cauda. A obsessão pelos onze fotogramas de Cunha Salles, 1897, gênese mítica do cinema brasileiro, não é simples exercício de aeróbica curto-documental, tipo tema-com-variações, mas uma mesmerizante “reelization” do pensamento fílmico, numa abstração de tresloucada reiteração, tal como as ondas se esbatendo na tela final dos limites mariopeixotanos.
Não são apenas ondas untando o velho madeirame de um trapiche, mas a própria estrutura-processo do pensamento icônico em sua sóbria demasia mnemônica. É Carlos Adriano aprendendo a urinar como as cigarras.

Pronto para cantar com Vassourinha, A voz e o vazio. A escolha em si do incrível pretinho tuberculoso já absorve o sabor do raro e do bizarro. Não houve, nem haverá, quem possa cantar Seu Libório com tão cândida malícia e justeza, ou sonhar com aquela casinha lá na Marambaia (eu estava num bonde aberto, vindo do ginásio Mackenzie, quando vi o ajuntamento à entrada do Araçá: - “Que enterro é esse?” – “É o Vassourinha”).

O filme narra a obra-vida do cantor como escólios de bandagens inscritas numa múmia, em montagens de gazes reticuladamente translúcidas (méritos para o fotobandagista Carlos Reichenbach, enfermeiro do table-top e cirurgião-mor da luz cine-informada). Estamos diante de scrolls do Mar Morto das doze canções que Vassourinha deixou.

A escritura icônico-hieroglífica de Carlos Adriano é  a decifração da decifração de uma rica tumbinha tutancamônica da MPB. Carlos Adriano: he’s reel !                        


Enviado por fax a Bernardo Vorobow em 7 dezembro 1998, 14h24


publicado na Folha de S. Paulo, Acontece (Ilustrada), pág. 1, 18 abril 1999

[*publicado na internet em 13 de outubro de 2015]