quarta-feira, 9 de setembro de 2009

John cage e augusto de campos – um diálogo (daniel lacerda)

http://www.revistazunai.com/ensaios/daniel_lacerda_johncage.htm
  • henry cowell banshee : http://www.youtube.com/results?search_query=henry+cowell+banshee&aq=f
  • Uma tensão subliminar entre voz e som parece animar a impressionante The Banshee (c. 1925), que alude à criatura fantástica do fabulário irlandês, o espírito anunciador da morte: “gemidos” quase-humanos e timbres pré-eletrônicos brotam das cordas esfregadas longitudinalmente ou beliscadas, segundo várias técnicas, conjugadas à compressão silenciosa dos pedais do piano (por um segundo executante) (CAMPOS : 1998, p. 234)
    Esse ‘segundo executante’ era, não raro, o próprio Cage. Fulcro de seu contato com Cowell, enquanto aluno e assistente de execução musical, portanto, deu-se a gesta cageana do piano preparado. É do compositor o relato que descreve, pari passu, o processo da invenção:

    Tendo decidido alterar o som do piano, a fim de criar uma música adequada ao Bacanal de Syvilla Fort, fui à cozinha, apanhei um prato de torta, trouxe-o à sala de estar e coloquei-o sob as cordas do piano. Toquei umas poucas notas. Os sons do piano haviam se alterado, mas a prato balançou ao redor, devido às vibrações e, passado um tempo, alguns dos sons que haviam sido alterados não mais permanceciam. Tentei algo menor: pregos por entre as cordas. Eles escorregavam por toda a extensão delas. Ocorreu-me que parafusos ou porcas permaneceriam em suas posições. Eles permaneceram. E eu fiquei fascinado ao notar que, por meio de uma única preparação, dois sons podiam ser produzidos. Um era ressonante e aberto, o outro silente e brando. O silente era ouvido sempre que o pedal leve era usado. Escrevi o Bacanal rapidamente, com a excitação que a descoberta contínua provera. (CAGE : 1981, págs. 7 e 8)
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  • sobre a influência da indeterminaç˜åo cageana em stockhousen e boulez: Klavierstücke XI”, (1956), Karlheinz Stockhausen & “Troisième Sonate” (“Terceira Sonata”), de Pierre Boulez.
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  • SILENCE:

    Embora o seu primeiro livro só tenha sido publicado em 1961, Cage já há muito produzia textos: “há mais de vinte anos venho escrevendo artigos e dando palestras”, diz o autor, na apresentação de “Silence” (CAGE: 1961). E muitos destes artigos e destas palestras ajudam a esclarecer aspectos fundamentais de sua música. Assim, em um fragmento de “The Future of Music :  Credo” (“O Futuro da Música : Credo”),  ensaio de abertura de sua obra inaugural, escrito em 1937 – ano, como já vimos, de “First Construction in Metal” (“Primeira Construção em Metal”), sua primeira composição para instrumentos de percussão  – lê-se:   
        
                ACREDITO  QUE O USO DE RUÍDOS
    Onde quer que estejamos, o que ouvimos são basicamente ruídos. Quando os ignoramos, nos perturbam. Quando os ouvimos, os achamos fascinantes. O som de um caminhão a cinqüenta milhas por hora. Estático entre estações. Chuva. Queremos capturar e controlar esses sons, usá-los, não como efeitos sonoros, mas como instrumentos musicais. Todo estúdio de cinema tem uma biblioteca de “efeitos sonoros” gravados em filme. Com um fonógrafo cinematográfico é agora possível controlar a amplitude e a freqüência de qualquer um desses sons e dar-lhe ritmos, aquém ou além do alcance de nossa imaginação. Dados quatro fonógrafos cinematográficos, podemos compor e executar um quarteto para motor explosivo, vento, batimentos cardíacos e deslisamento de terra.
                                                                                      PARA FAZER MÚSICA
    Se esta palavra –  “música” –  é sagrada e reservada aos instrumentos dos séculos dezoito e dezenove, podemos substitui-la por um termo mais significativo: organização de sons.
    VAI PROSSEGUIR E CRESCER ATÉ ATINGIRMOS UMA MÚSICA PRODUZIDA COM O AUXÍLIO DE INSTRUMENTOS ELÉTRICOS (...)

                (idem ibidem, p. 3)

     SATIE vs Debussy:
    De fato, a música e o pensamento de Satie parecem muito mais próximos do universo de Cage do que a austera  estrutura dodecafônica de Schoenberg, por exemplo. A exemplo do compositor norte-americano que, em meados do século XX, responde ao cerebralismo europeu com a indeterminação de suas ‘chance operations’,  Satie, ao final do  XIX e nas primeiras décadas do XX,  contrapõe ao impressionismo de Claude Debussy – os “Noturnos” debussyanos são de 1899 – micro-peças perpassadas de paródias, cujos títulos, segundo Augusto de Campos, “criticam (...), em poéticos disparates, a nomenclatura deliquescente de matiz impressionista” (idem ibidem). Entre esses títulos, alguns, mencionados por Campos:“Peças Frias (Três Árias pra Fazer Corre e Três Danças de Viés), 1897;  Prelúdios Flácidos para um Cão, 1912, Três Valsas Distintas do Afeto Enfadado, 1914(...)” (idem ibidem, p. 76).

    Outro ponto de contato entre Cage e Satie: também este produziria textos entre-códigos, perpassados de iconicidade, matiz da inventividade de sua criação musical (criticado por Debussy, segundo o qual sua música padeceria de um maior apuro formal, Satie responderia-lhe enviando suas “Peças em Forma de Pêra”. . . )

    Os escritos satianos são assim definidos por Augusto de Campos: “O riso de Satie escoou para os seus Escritos (...). Peças curtas e fragmentárias (como as suas músicas), tendendo ao aforismo: anotações, pseudoestudos, peseudoconferências, quase-poemas, desenhos, anúncios-poemas – um material que demanda, como Esportes e Divertimentos, reprodução fac-similar, pois o design caligráfico é parte integrante da criação.” (idem ibidem, p. 76)

    IVES:
     
    Dois pensamentos de Charles Ives, por Cage citados em seu ensaio, merecem destaque: “(...) As fontes sonoras vêm de diferentes pontos no espaço(idem ibidem); (...)  alguém sentado /  numa varanda / numa cadeira de balanço / fumando um cachimbo /  olhando a /  paisagem que se estende na distância /   imagina que  / quando essa pessoa /  que é qualquer um /  está sentada lá /   sem fazer nada /   está ouvindo sua própria sinfonia (...)” (ibem ibidem, págs. 42 e 43)

    Perpassadas por uma atmosfera zen-budista, ambas essas divisas, que Cage coloca como fontes propulsoras da sua inflexão em relação à música de Ives (ainda que deixando claro que suas restrições ao que ele chama de “afetuosos, tocantes e sentimentais (...) aspectos americanos de sua música” (idem ibidem, p. 36) não se atenuariam) , absolutamente não surpreenderiam se encontradas em meio aos escritos do próprio autor de “Silence”. Quanto a possíveis paralelos entre as poéticas dos dois compositores, talvez possam ser detectados pontos em comum – ainda que Cage houvesse sentenciado, em sua “History of Experimental Music in the United States” (“História da Música Experimental nos Estados Unidos”) não serem as peças de Ives senão meras “curiosidades do passado” (CAGE : 1961). É o que o demonstra uma leitura mais detida sobre a linguagem ivesiana, como a que a ela dedica Augusto de Campos em “Ives Salve a América” (CAMPOS: 1974).

    Para Campos, a exemplo da de Satie, também sob a música de Ives – e, complementaríamos nós, a de Cage –  pervaga uma “atitude dessacralizadora” (CAMPOS : 1974, p. 278). Assim, sua “Segunda Sinfonia” (1897-1902) compreende “citações ivesaniadas” , sério-jocosas, de Brahms (“Primeira e Terceira Sinfonias”), Beethoven (“Quinta Sinfonia”) e Wagner (“Tristão” e “Valquírias”), além de Bach, Brückner e Dvorak (“Sinfonia Novo Mundo”), justapostas a hinos e canções populares norte-americanos. Diante de uma gesta de tal teor paródico –  “Música sobre Música. Brahms, Beethoven, Wagner repassados, mastigados, ‘deglutidos’ e confrontados com a música de massa pré-industrial e pré-consumista do coral e do coreto (...)” (idem ibidem, p. 278) – parece-nos que a crítica de Cage à abordagem ivesiana do ‘folk americano’ – ‘afetuosos, tocantes e sentimentais’ –  mereceria ser revista, pois há aqui muito da irreverência da verve colagística que preside a própria arte cagiana.

    Em outro extremo de Ives, em outro Ives-limite, ouve-se o silêncio. O silêncio de Webern e de Cage. Trata-se de “The Unanswered Question (A Cosmic Landscape)” (“A Pergunta Sem Resposta (Uma Paisagem Cósmica)”)  (1908). Sobre a estrutura da peça, Augusto de Campos comenta:

    Uma melodia-pergunta é formulada por um pistão (ou oboé) e respondida por um quarteto de sopro (4 flautas ou 2 flautas + oboé + clarineta) contra um fundo de cordas (quarteto ou orquestra) em surdina, que devem ficar fora do palco, à distância dos outros instrumentos. Por seis vezes o pistão entoa a pergunta, num tempo lento. Ao seu encontro, como que por acaso, vêm as respostas do conjunto de sopro, em tempos progressivamente mais rápidos. Por último, é proferida mais uma vez a melodia-pergunta, que permanece irrespondida.

    Abordando questões de espacialização – “as distâncias entre o instrumento solista e os dois grupos sonoros que agem como blocos separados um do outro”(idem ibidem, p. 280) –  é  a presença do acaso – “a relação entre a pergunta, as respostas e os desencontros delas entre si(idem ibidem, p. 280) – que remete de imediato a Cage. Mas é na inclusão de silêncios que o diálogo de Ives com o autor de “4` 33``” mais intensamente se verifica: “esta é uma composição semântica, um verdadeiro poema sem palavras, onde os sintagmas sônicos adquirem a qualidade de signos com um denotatum  que coincide, isomorficamente, com a própria informação, nos seus três planos: solo (pergunta), cordas (silêncio), conjunto de sopro (resposta)”(idem ibidem, p. 280) A pergunta do pistão – “segundo o autor, a ‘perene indagação da existência’(idem ibidem, p. 280)– repete-se inúmeras vezes, sempre de forma absolutamente clara. Já as respostas dos instrumentos de sopro soam  “cada vez mais entrópicas ou desordenadas”
    (idem ibidem). Na medida em que a peça avança, elas diminuem em número,  até atingirem o silêncio, “sobrando, em suspenso, a pergunta que sugere uma forma irresolvida, aberta.”  (idem ibidem, p. 280)

    Para Campos, é o Mallarmé de “Un Coup de Dés” o único paralelo possível, no plano literário, à aventura de Ives: “The Unanswered Question, na modéstia da sua duração, que gira em torno dos 5 minutos (duração média das composições de Webern), é, na verdade, o ‘Lance de Dados’ ivesiano. A cosmogonia sintético-ideogrâmica de Mallarmé é o único paradigma literário que nos evoca a densa ‘passagem cósmica’ do compositor norte-americano.” (idem ibidem, p. 280)

    E – via Webern – o Cage dos anos 50 seria um possível paradigma musical, uma réplica provável à “Pergunta Sem Resposta”de Charles Ives.

    UMBERTO ECO:
  • Em “Zen e Ocidente”, Umberto Eco afirma ser o Zen “uma especificação do budismo que mergulha suas raízes nos séculos e que influenciou profundamente as culturas chinesa e japonesa”(ECO : 1988). Mas quais os seus fundamentos básicos?

    Avalizada por sua venerável idade, essa doutrina vinha ensinar-nos que o universo, o todo, é mutável, indefinível, fugaz, paradoxal; que a ordem dos eventos é uma ilusão de nossa inteligência esclerosante, que toda tentativa para defini-la e fixá-la em leis está condenada ao fracasso . . .  Mas que justamente na plena consciência e aceitação desta alegre condição está a extrema sabedoria, a iluminação definitiva; e que a crise eterna do homem não surge porque ele deve definir o mundo e não o consegue, mas porque quer defini-lo e não deve.
    (idem ibidem, p. 206)
    No Oriente, o alcance da influência Zen atingiria as mais variadas técnicas: da esgrima e do tiro com arco até a pintura, passando pela arquitetura, pelas cerimônias do chá e das flores e pela poesia. Já no Ocidente, Eco reflete sobre a interferência da doutrina oriental, a partir dos anos 50, em vários segmentos de sua arte e de sua cultura – beat generation, pintura informal, psicanálise e filosofia (Jung, Heidegger e Wittgenstein) – para, em seguida, afirmar: 

    Mas onde a influência Zen se fez sentir de maneira mais sensível e paradoxal foi na vanguarda musical norte-americana. Referimo-nos em especial a John Cage, a figura mais discutida da música norte-americana (sem dúvida, a mais paradoxal de toda a música contemporânea), o músico com que muitos compositores pós-webernianos e eletrônicos estão frequentemente em polêmica, sem poder subtrair-se à sua fascinação e ao inevitável magistério de seu exemplo.
    (idem ibidem, p. 211 e 212)


    E chamando-o “profeta da desorganização musical” e “sumo sacerdote do acaso” (idem ibidem,p. 212) declara o semioticista italiano que, antes do que um músico de vanguarda, Cage,  “deve ser encarado como o mais inopinado dos mestres Zen” (idem ibidem, p. 212), guardando sua música  “muitas e exatas afinidades com a técnica do  e das representações do teatro Kabuki, ainda que somente nas longuíssimas pausas alternadas com movimentos musicais absolutamente pontuais” (idem ibidem, p. 214).

    Instância exemplar da ascendência Zen-budista sobre Cage seria a introdução à sua  “Conferência na Juilliard”, aonde narram-se trechos de uma palestra de Daisetz Teitaro Suzuki – segundo Umberto Eco, “um ancião que dedicou sua vida à divulgação dessa doutrina no Ocidente, escrevendo uma série de volumes e qualificando-se como a máxima autoridade no assunto” (idem ibidem, p. 205):

    segue a conferencia de julliard


    Já para o exame da face neo-dadaísta de Cage examinemos o que de Dadá diz, em seu “DADA, Art and Antiart” (“Dadá, Arte e Antiarte”), Hans Richter, um dos membros mais atuantes do movimento:
    Dadá não só não tinha nenhum programa, era contra todos os programas. O único programa de Dadá era não ter programa . . . e, naquele momento da história, era justamente isto que dava ao movimento seu poder explosivo para desdobrar-se em todas as direções, livre das amarras estéticas ou sociais. Esta liberdade absoluta de preconceitos era algo bem novo na história da arte. A fraqueza da natureza humana garantia que a situação paradisíaca não poderia durar muito. Mas haveria de vir um movimento em que a liberdade absoluta fosse concedida pela primeira vez. Esta liberdade poderia  levar ( e levou) a uma nova arte – ou a nada. Descerceado pela tradição, libertado pela gratidão (um débito raramente pago por uma geração à outra), Dadá expôs suas teses, anti-teses e a-teses. (RICHTER : 1997, p. 34)  


    Caro seria, sem dúvida, à linguagem cagiana o espírito libertário dadaísta, notadamente pelo diálogo que travaria ela com a arte de Marcel Duchamp. Sobre o teor desse diálogo, no entanto, nos deteremos mais demoradamente em nossa leitura da obra duchampiana. 

    Mas Cage via com ceticismo a abordagem Zen-dadaísta de sua arte. No ensaio intradutório a “Silence”, o autor afirma que os conceitos do Zen e de Dadá estariam, na América dos anos cinquenta, obnubilados:
    Críticos freqüentemente gritam “Dadá” após assistir um de meus concertos ou ouvir uma de minhas conferências. Outros lamentam meu interesse pelo Zen. Uma das mais entusiásticas conferências que eu já ouvi foi dada por Nancy Wilson Ross na Cornish School, em Seattle. Chamava-se Zen Budismo e Dadá. É possível fazer uma conexão entre os dois, mas nem Dadá nem o Zen é um tangível fixo. Eles mudam; e de formas bem diferentes, em diferentes tempos e lugares, eles revigoram ações. O que foi Dadá nos anos vinte é agora, com exceção do trabalho de Marcel Duchamp, somente arte. O que eu faço, eu não pretendo creditar ao Zen, ainda que sem o meu engajamento com o Zen (assistindo a conferências de Alan Watts e D. T. Suzuki, lendo a literatura) eu duvido que teria feito o que fiz. Ouvi dizer que Alan Watts questionou  a relação de minha arte com o Zen. Digo isto a fim de isentar o Zen de qualquer responsabilidade por minhas ações. Deverei continuar a fazê-las, no entanto. Eu costumo dizer que hoje em dia Dadá tem em si um branco, um vazio que anteriormente lhe faltava. O que é hoje, na América de meados do século vinte,  o Zen? (CAGE : 1973, p. xi)


    por fim daniel lacerda trata de dizer onde cage influencia campos